São Paulo teve sua estruturação urbana conforme o seu relevo. De maioria acidentado, foi nas áreas planas das várzeas dos rios e terraços fluviais que foram instaladas as ferrovias, onde podiam se desenvolver em um traçado mais adequado às suas limitações.
O trem, máquina de cortar cidades atravessando os obstáculos naturais da paisagem numa velocidade de sessenta quilômetros por hora, foi a invenção capaz de abreviar fronteiras. Esse instrumento de fazer conexões originado durante a Revolução Industrial, viabilizou o estabelecimento de uma cadeia produtiva entre as suas várias paradas, ao transportar as manufaturas das fábricas em suas toneladas de maquinário em locomoção.
Assim as estradas de ferro da São Paulo Railway Company, inauguradas em 1867 num traçado que conectavam o porto de Santos a Jundiaí, possibilitaram o município paulistano a garantir o monopólio do café entre a produção e o escoamento, prosperando como cidade e se desenvolvendo como metrópole, colaborando ainda para o surgimento de pequenos aglomerados urbanos.
Impulsionados pela orla ferroviária, parte essencial do sistema industrial da cidade foi estabelecido em áreas centrais, próximos a ramais de escoamento da produção (PORTAL VITRUVIUS, 2003). Bairros ainda em formação como o Bom Retiro, Brás, Água Branca e Mooca, receberam dessa forma, fábricas servidas pelo desvio da ferrovia.
Com os efeitos da globalização atuando na reestruturação produtiva, “implicando em desconcentração industrial, aliada ao crescimento do setor terciário” (SOUZA, 2002 p.42), o território paulistano entrou em mutação, passando de cidade industrial para metrópole pós-industrial, de serviços.
Dessa forma, o território que antes era ocupado pela indústria passou a ser descaracterizado, e os ramais ferroviários, próprios para a distribuição da produção fabril, tornaram-se sistemas em desuso e agentes da fragmentação urbana. Ou seja, “as estruturas que definiram a sua ocupação e consolidação hoje representam a sua obsolescência: os terrenos vagos” (SOUZA, 2002 p.12).
O Moinho Central, a princípio operado pela Moinho Fluminense da Santista Alimentos S.A. do Rio de Janeiro, teve em sua história os reflexos da memória paulistana relacionada ao advento da ferrovia, industrialização, pós-industrialização e posterior abandono.
Inaugurado em 1949 com a possibilidade de moagem de 450 toneladas diárias de farinha, silos com capacidade para estocar 5.600 toneladas de trigo e, com a subsequente abertura de uma fábrica de massas em 1956 quando fora adquirido pela empresa alimentícia Bunge, era estrategicamente localizado numa área circunscrita por ramais ferroviários (PEIXOTO, 2012) operados pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, entre as estações Júlio Prestes e Barra Funda, no bairro dos Campos Elísios.
Historicamente, os silos de grãos surgiram da necessidade de estocagem de cereais. Inicialmente feitos por pequenas bacias, à medida em que estas aumentaram de peso e tamanho para garantir uma maior reserva, também tornaram o manuseio para a extração de sementes dificultoso, sendo necessário o auxílio de conchas ou outros utensílios, o que aconteceria futuramente por sistemas de elevadores. Segundo Reyner Banham “A parte ativa de um elevador de grãos consiste em máquinas para inclinar ou colhê-los de carroças, vagões ou porões de navios nas caixas de armazenamento e decantá-los posteriormente para outras formas de transporte” (BANHAM, 1989 p. 109, tradução do autor). Muitos foram os sistemas criados para tal ação, sendo o primeiro elevador elétrico construído no ano de 1897 em Buffalo, nos Estados Unidos.
Estes equipamentos de içamento eram originalmente envoltos por construções em madeira ou tijolo, mas como os grãos contidos eram altamente inflamáveis, a vida útil dessas obras era de 12 a 15 anos, não por problemas estruturais, mas devido a vulnerabilidade a explosões.
A busca por formas resistentes à tração e materiais à prova de fogo desencadeou uma sequência de experimentações nas futuras construções. A configuração roliça, como é ainda conhecida a tipologia dos silos, foi adotada por ser estruturalmente estável e ter uma boa relação volume/superfície. “Um modelo para a geometria estava disponível em todo o mundo industrializado, usado com pelo menos um material razoavelmente adequado: era a caldeira a vapor comum, ou tanque de armazenamento de líquidos, construído em chapa de aço rebitada e de forma cilíndrica” (BANHAM, 1989 p. 115, tradução do autor).
Dessa maneira, ainda em busca de melhorias, em 1899 foi criado um experimento de silo em concreto reforçado por aros de cinta de aço, em Minneapolis, nos Estados Unidos. A partir de testes sobre a qualidade dos grãos, mesmo após meses em estoque, este modelo construtivo se mostrou o mais eficiente, passando a ser incorporado mundo à fora.
No entanto, quando as funções físicas e justificativas econômicas desses silos desapareceram devido ao surgimento de novas tecnologias e a descentralização industrial, como essas estruturas tinham uma grande durabilidade por serem feitas para resistirem a intempéries e possíveis explosões, e os terrenos em que eram inseridos tinha um baixo valor, era mais vantajoso o abandono ao invés da demolição, sendo muitos os silos deixados fora de funcionamento, configurando espaços residuais. (BANHAM, 1989)
O arquiteto historiador Solà-Morales denomina esses espaços urbanos pós-industriais em abandono com a expressão francesa terrain vague. No termo, terrain se refere à uma extensão do solo de limites preciosos e edificáveis na cidade, enquanto vague é definido como vazio, ausência, mas também como promessa, um espaço de possibilidades. “São lugares obsoletos, nos quais apenas certos valores residuais parecem ser mantidos, apesar de sua completa insatisfação com a atividade da cidade” (SOLÀ-MORALES, 2002 p.187, tradução do autor).
Uma das características mais evidentes dos terrenos pós-industriais urbanos é o isolamento em relação às redes de mobilidade que unem as diversas escalas da metrópole. Apesar da proximidade geográfica dos centros das cidades, esses terrenos permanecem amplamente desconectados da vida urbana, devido ao histórico uso industrial. (CORREA, 2018 p. 234)
Suas bordas carecem de incorporação efetiva, são ilhas interiores esvaziadas de atividade, são esquecimentos e restos que permanecem fora da dinâmica urbana. Tornando-se simplesmente áreas desabitadas, inseguras e improdutivas. Em suma, lugares estranhos ao sistema urbano, exteriores mentais no interior físico da cidade que surgem de suas críticas como no sentido de sua possível alternativa. — SOLÀ-MORALES, 2002 p.188, tradução do autor.
Com tal característica, quando a economia paulista passou em suma de industrial para de serviços, houve o consequente esvaziamento da ocupação fabril, sendo na década de 1980 a desativação do Moinho Central. Delimitado pela linha do trem, o seu território passou então para o controle da Rede Ferroviária Federal, mas, sua localização que era antes estratégica, tornou-se agente de sua própria ruína.
Com o futuro endividamento da RFFSA, seus bens passaram a ser leiloados, sendo a área do Moinho Central arrematada conjuntamente pelo empresário Ademir Donizetti Monteiro e a empresa Mottarone Serviços de Supervisão, Montagens e Comércio Ltda. Porém, segundo André Cabette em reportagem para o Nexo Jornal, o registro da compra não foi concluído, “o que abriu um litígio com a RFFSA, formalmente extinta em 2007, quando seus bens – e disputas judiciais – foram transferidos para a União” (CABETTE FÁBIO, 2017), levando o território ao desuso tanto pelos antigos proprietários, quanto pela indefinição jurídica sobre sua nova posse.
Tendo o abandono como resultado, este, assim como terrenos semelhantes de São Paulo, foram descritos por Carlos Leite de Souza em sua tese de doutorado, como “as cicatrizes deixadas pela passagem da ferrovia no tecido urbano central. Os vazios. A escala imensurável. As fraturas urbanas” (SOUZA, 2002, p. 53). E como já mencionado por Solà-Morales em seu livro Territorios (2002), assim como a ecologia luta pela preservação de espaços naturais, a arte busca refúgio no terrain vague, espaço incomum no qual a cidade não pode mais ser considerada como estando lá e, livre da homogeneidade e falsa liberdade da metrópole, se torna de interesse artístico.
Dito isto, a metrópole contemporânea, suas mutações urbanas e os confrontos sociais e espaciais gerados, foi o ponto de partida para a série de intervenções crítico investigativas do Arte/Cidade. Sob curadoria de Nelson Brissac Peixoto, a primeira edição do evento, ‘A Cidade Sem Janelas’ de 1994, promoveu manifestações artísticas no antigo matadouro desativado da Vila Mariana. Na edição seguinte, ‘A Cidade e seus Fluxos’, instalações ocuparam os últimos andares dos imóveis do edifício Alexandre Mackenzie, da agência do Banco do Brasil, e do edifício Guanabara, na parte de baixo do vale do Anhangabaú, além da área aberta em torno do Viaduto do Chá, delimitada por essas edificações.
Em 1997, a terceira edição do projeto, ‘A Cidade e Suas Histórias’, estreou em uma área de cerca de 5 quilômetros do ramal ferroviário que passava por lugares de relevância para o período fabril de São Paulo. O projeto englobava três endereços principais: Estação da Luz, os silos e as construções abandonadas do Moinho Central, e os galpões que restaram das antigas Indústrias Matarazzo.
Diferentemente das intervenções anteriores, apesar de estudos para que se viabilizassem melhorias pós ocupação, a cidade não reagiu da mesma forma à essas incursões artísticas. Enquanto na primeira e segunda montagem houve uma incorporação de edifícios residuais para o uso público/cultural, como nos casos da Cinemateca Brasileira na primeira edição, do Centro Cultural Banco do Brasil e do Shopping Light na segunda, o terreno e os edifícios do Moinho Central se mantiveram até certo momento esquecidos, apesar de toda a visibilidade promovida pelas intervenções do Arte/Cidade.
No que esses edifícios se diferenciavam dos que foram incorporados pelas edições anteriores do projeto? Ainda que o território estivesse inserido em região central de São Paulo, servido por meios de conexão e equipamentos de serviços nas redondezas, a sua configuração prisioneira da linha do trem o manteve sob o desinteresse do ponto de vista imobiliário-lucrativo. Apesar disso, quando essas terras, mesmo que ilhadas pela ferrovia, passaram a ser apropriadas por pessoas sem moradia, o terreno se tornou atrativo e de interesse público – provavelmente por mostrar a possibilidade em ser habitado – , ao passo em que o conjunto de galpões de seu entorno foi abruptamente assimilado pela indústria imobiliária e a favela coincidentemente passou a ganhar mais incendios.
Após a desativação do Moinho Central e o seu posterior abandono, o território passou a ser ocupado informalmente no final dos anos de 1990 e o início dos anos 2000. É ainda relatado por moradores que mesmo na década de 1980 tanto os imóveis abandonados quanto a área encoberta pelo viaduto Engenheiro Orlando Murgel, já eram utilizados como abrigo por pessoas em situação de rua. (CABETTE FÁBIO, 2017) Consequentemente, moradias começaram a ser erguidas ocupando o território e a Favela do Moinho, como é conhecida hoje em dia, surgiu por entre os limites impostos pela malha ferroviária, como uma cidade dentro da cidade de São Paulo.
Sendo uma exceção por se estabelecer no centro da cidade enquanto a maioria ocupa as periferias da região metropolitana, a Favela do Moinho manifesta-se também como um embate por terras centrais em desuso. Em torno dessas questões, uma série de ações judiciais deixam incerto o futuro do terreno e de seus moradores. Atualmente a área é disputada pela União federal, que pede a anulação do leilão de 1999; pela prefeitura, que em 2006 criou um decreto de utilidade pública para remoção do assentamento; e por moradores, que exigem o direito à posse por usucapião por estarem estabelecidos no local há mais de 30 anos, o que fora concedido em 2008 provisoriamente até o julgamento final, que não tem data prevista. (CABETTE FÁBIO, 2017)
Nesse meio tempo, desde 2001 incêndios passaram a ser recorrentes no terreno da Favela, acarretando na destruição de edifícios do Moinho Central e no desabrigo de numerosos moradores. Em 2007, parte das fábricas do Moinho foram destruídas pelo fogo. Em dezembro de 2011, um dos maiores incêndios ocorreu na região, registrando a necessidade de novos abrigos para cerca de 1,5 mil pessoas. Neste momento houve também a demolição dos edifícios que faltavam do Moinho Central, restando apenas o silo como construção reminiscente da fábrica alimentícia. Logo no ano seguinte outro grande incêndio ocorrera, removendo ao todo cerca de 600 famílias do local, “o que levou a especulação de que seriam incêndios criminosos com o objetivo de liberar a área” (CABETTE FÁBIO, 2017). Questões de violência entre policiais e a comunidade sob alegação de combate a roubos e ao tráfico de drogas também são frequentemente relatadas. Além do mais, em 2012 um muro de concreto de 55 metros de comprimento foi construído como forma de impedir a expansão da favela para o terreno adjacente. Desde então, cada vez mais torres de condomínios de apartamentos emergem da demolição de galpões industriais do entorno e recentemente, durante uma pandemia, em abril de 2020, os moradores da Favela do Moinho relataram mais uma ação truculenta no local (Folha UOL, 2020).
Referências Bibliográficas
BANHAM, Reyner. A Concrete Atlantis: U.S. industrial building and european modern architecture, 1900-1925. 3a ed. Cambridge: MIT Press, 1989
CABETTE FÁBIO, André. As suspeitas de violência policial, os incêndios e as disputas na favela do Moinho. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/30/As-suspeitas-de- violência-policial-os-incêndios-e-as-disputas-na-favela-do-Moinho> 30 de jun. de 2017. Acesso em: 5 de nov. de 2019.
CORREA, Felipe. São Paulo: uma biografia gráfica. 1a ed. São Paulo: Romano Guerra, 2018.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo/ Edições SESC SP, 2012.
PORTAL VITRUVIUS. Concurso Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo - XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos.Projetos, São Paulo, ano 03, n. 034.02. Vitruvius. Disponível em: <http://www.wvnvw. vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/03.034/2236> out. de 2003. Acesso em: 27 de mai. de 2019.
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territorios. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
SOUZA, Carlos Leite de. Fraturas urbanas e a possibilidade de constução de novas territorialidades metropolitanas: a orla ferroviária paulistana. Dissertação de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
O presente ensaio é consequência do trabalho de conclusão de curso de graduação em arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade feito pelo aluno Breno Felisbino da Silveira, orientado pelo prof. Dr. João Sodré, também publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #10 da Associação Escola da Cidade e disponível aqui.